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17/07/2006 - 09h00

Deus é o vilão em dois lançamentos nos quadrinhos

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FAUSTO SALVADORI FILHO
da Folha Online

Nada de Lex Luthor, Coringa ou Doutor Silvana. O vilão de dois álbuns de histórias em quadrinhos lançados pela editora Devir é Deus, o próprio. Com os poderes da onipotência, onipresença e onisciência, o Todo-Poderoso enfrenta uma espécie versão barra-pesada e politizada da Liga da Justiça em "The Authority-Sob Nova Direção" (182 págs.) e um pastor renegado em "Preacher-A caminho do Texas" (200 págs.).

Em "The Authority", Deus surge num contexto de ficção científica, como um gigantesco alienígena em formato de pirâmide responsável pela criação do Sistema Solar. Já nas histórias de "Preacher", o vilão é mesmo o Deus cristão tradicional, aquele barbudo, cheio de luz e palavras de amor e perdão.

Super-heróis diferentes

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Cena de Authority: Deus quer curar a Terra da infestação humana
Cena de Authority: Deus quer curar a Terra da infestação humana
Criado em 1999 pela dupla britânica Warren Ellis e Bryan Hitch para a editora Wildstorm, "The Authority" causou sensação ao mostrar uma história de super-heróis que carregava nas tintas da violência e da política.

Cínicos e brutais, os sete super-heróis do grupo Authority seguem uma cartilha bem diferente da correção política dos seus colegas de "Liga da Justiça", "X-Men" e cia. Além de praguejar, usar drogas e fazer sexo, os protagonistas não se limitam a enfrentar cientistas loucos ou ETs assassinos. Os heróis preferem combater vilões muito mais próximos, como ditadores do Sudeste Asiático ou o governo norte-americano. Em vez de proteger a Terra, eles querem modificá-la.

A revista também causou polêmica ao trazer o primeiro casal assumido de super-heróis gays: Apolo e Meia-Noite, espécie de versão cor-de-rosa de Super-Homem e Batman. Outro personagem, o Doutor, é um mago que usa as drogas para entrar em contato com os espíritos de xamãs, que incluem Einstein, Buda e Cristo.

O Authority joga pesado. Numa queda-de-braço com o governo americano, ameaça "pôr no ar a agenda de telefones de todas as prostitutas de Washington". Quando Apolo é violentado por um vilão, Meia-Noite se vinga sodomizando o maníaco sexual com uma britadeira.

"Sob Nova Direção" é o segundo volume encadernado com as histórias da grupo lançado pela Devir, e reúne os números 9 a 16 da edição americana. O primeiro arco de histórias do álbum, "Trevas Cósmicas", foi o último feito pela dupla original Ellis e Millar. Além da violência e do humor, os roteiros de Ellis enfatizam conceitos bizarros de "science fiction" --como balsas espaciais vivas e universos-bebês enjaulados-- e as batalhas épicas, perfeitas para o traço realista e grandioso de Hitch, que adora fazer artes majestosas em quadros de página inteira.

No arco de despedida dos seus criadores, o Authority enfrenta uma antiga criatura alienígena que é "a coisa mais próxima do conceito de Deus que este universo já viu". Bilhões de anos atrás, explica o Doutor, Deus criou a Terra como seu retiro de férias, mas descobriu, ao voltar de um passeio pelo Universo, que o planetinha agora estava coberto pela humanidade, "essa irritante infecção de seis bilhões de organismos". Para livrar a Terra de ser desinfetada, o Authority precisa "achar um jeito de matar Deus", invadindo as próprias entranhas da divindade.

Censura

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Apolo e Meia-Noite, primeiro casal de super-heróis gays: beijo foi censurado
Apolo e Meia-Noite, versão gay de Super-Homem e Batman: beijo foi censurado
A segunda e melhor parte do álbum, "Natividade", marca a troca da equipe criativa por uma dupla escocesa: o roteirista Mark Millar e o artista Frank Quitely. Millar manteve o humor negro e a violência extremada, ao mesmo tempo em que passou a enfatizar o aspecto político do Authority, na sua luta por atuar como uma polícia global. Quietly usa um traço estilizado e detalhista para criar super-heróis num estilo europeu, que lembra o francês Moebius.

Em várias ocasiões, as implicações políticas dos roteiros de Millar enfrentaram problemas com a DC Comics --­uma das principais editoras de quadrinhos do mundo, responsável por Batman e Super-Homem, que havia comprado a Wildstorm em 1999.

Logo no começo de "Natividade", publicado originalmente em 2000, os heróis provocam a morte do então presidente da Indonésia, Jusuf Habibie. A cena foi mantida, mas a pressão da DC eliminou às referências ao país e ao nome do ditador. A editora também teria vetado uma cena de beijo entre Apolo e Meia-Noite.

A pressão da DC se intensificaria após os atentados de 11 de setembro de 2001: cenas de necrofilia e extrema violência em Nova York , além de referências desrespeitosas ao presidente George W. Bush, levaram a editora a vetar um número inteiro da revista. Os atritos entre a equipe criativa e a editora levaram ao cancelamento do título no mesmo ano. A série seria retomada por outros autores anos depois.

A edição da Devir infelizmente não tem o mesmo padrão de qualidade que costuma ser a marca da editora. A impressão em algumas páginas está borrada, o que prejudica a arte cheia de detalhes de Frank Quitely, mas não chega a comprometer o álbum.

Em busca de Deus

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Jessé Custer quer acertar contas com Deus
Capa de Preacher: Jessé Custer quer acertar contas com Deus
Observados por garçonetes melancólicas e pelos vidros sujos com catchup de um café perdido no interior dos Estados Unidos, três pessoas conversam. Não vemos direito seus rostos, mas percebemos que estão falando de Deus e sobre como encontrá-lo. Uma mulher diz: "Pelo que eu sei, tem dois locais perfeitos para se procurar Deus: na igreja ou no fundo de uma garrafa". O homem diante dela responde: "Então, talvez eu deva procurar uma loja de bebidas... pois uma coisa eu digo: numa igreja é que Ele não está" --no final da frase, um close, e percebemos que a fala vem de um pastor.

O pastor é Jesse Custer, e a seqüência é a primeira página de Precher, uma saga fechada --com começo, meio e fim, algo incomum nos quadrinhos americanos-- de 75 números que conta a história da busca de Custer em sua busca por Deus. Literalmente.

Após se fundir a uma criatura super-poderosa, nascida do cruzamento entre um anjo e um demônio, o pastor Custer confronta os paus-mandados do Paraíso a respeito do Criador e descobre que Ele desistiu. Deus abandonou sua criação e se escondeu em algum lugar dos Estados Unidos.

A partir daí, a história segue em clima de "road movie", quando Custer passa a percorrer os EUA atrás do Todo-Poderoso. "Eu estou à procura de Deus porque concluí que ele abandonou sua criação. (...) Quero confrontá-lo e ouvir o que tem a dizer sobre essa acusação", afirma Custer.

Na sua busca, Custer é acompanhada pela namorada, Tulip, pelo amigo Cassidy --um vampiro irlandês que prefere beber cerveja a sangue-- e pelo fantasma de John Wayne, que atua como uma espécie de conselheiro de Custer.

A peregrinação de Custer freqüentemente mostra a América pelo que ela tem de mais estúpido. Ennis não poupa ninguém. A cultura teen é representada pelo adolescente grunge que atira no próprio rosto para imitar o gesto de Kurt Cobain, mas sobrevive com um buraco em forma de ânus no rosto, tornando-se o Cara-de-Cu (Arseface); descoberto pela MTV, vira um astro pop. O Sul do país aparece com seus caipiras que transam com galinhas e se casam com as irmãs, e Nova York, com seus psicopatas que guardam cadáveres na geladeira e policiais durões homofóbicos que secretamente curtem orgias gays sadomasô.

Tudo passando pelo traço do britânico Steve Dillon, que se revelou o parceira ideal para o textos de Ennis, seja pela sua habilidade em retratar expressões e fisionomias--imprescindível para um autor que se destaca pelos diálogos irônicos e afiados, à la Quentin Tarantino--, seja por seu talento natural para desenhar pessoas deformadas e mandíbulas arrancadas.

Politicamente incorreto

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Página de Preacher: Jesse Custer, rodeado por anjos e demônios
Página de Preacher: Jesse Custer, rodeado por anjos e demônios
Polêmica nunca foi novidade na carreira do roteirista Garth Ennis, um estranho no ninho das grandes editoras que não está nem aí para os cânones dos quadrinhos. Irlandês de origem católica, Ennis escreveu uma das fases mais inventivas do personagem John Constantine, um mago que combatia com o mesmo desprezo os demônios do inferno e os anjos do Senhor --(mal) adaptada para o cinema no filme "Constantine" (2005), de Francis Lawrence, com Keanu Reeves.

Ennis também assina "Hitman", sobre um super-herói que prefere ganhar a vida como matador de aluguel de outros super-seres em vez de sair por aí salvando o mundo de graça, e A Pro, sobre uma prostituta com super-poderes, que veste capa e uniforme entre uma e outra sessão de "blowjob" a 50 dólares.

Há muito humor --politicamente incorreto até a medula-- em "Preacher", mas, como afirma o escritor Joe R. Lansdale no prefácio, "essa história é tão séria quanto qualquer material altamente 'intelectual' altamente elogiado da Vertigo [divisão de quadrinhos adultos da DC Comics, responsável por "Preacher" e outros quadrinhos], e bem melhor do que uma porção deles". À medida que a história avança, o leitor percebe que o tema central da história não é a trama fantástica do Todo-poderoso foragido. Ennis está mais interessado no relacionamento entre os três personagens centrais e em temas essenciais como amizade, amor e honra, que são abordados de uma perspectiva desencantada, irônica, mas muito humana.

No Brasil, talvez por alguma maldição divina, Preacher teve o azar de ser publicado por pequenas editoras amadoras, que lançaram a revista sem qualquer periodicidade e ainda interromperam a história faltando seis números para o final. A bela edição de luxo da Devir vem reparar esta injustiça.

A editora recomeçou a publicar a história do zero com o primeiro arco, "A caminho do Texas", que reúne os sete primeiros números da revista. A edição caprichada, com impressão irretocável, inclui também uma nova tradução, mais cuidadosa --em que, por exemplo, "redneck" vira "caipira" e não "pescoço-vermelho", como nas edições anteriores.

Cinema

Desde que foi lançado, "Preacher" despertou interesse para adaptações cinematográficas. O ator James Marsden (o herói mauricinho Ciclope, da trilogia "X-Men") tentou emplacar na HBO um projeto para encarnar Jesse Custer em um filme ou numa série de TV, mas a idéia nunca saiu do gibi. Não deve ser fácil convencer os produtores a adaptar uma história que mostra Deus como o maior dos vilões.

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